A Revolta da Chacina: Entre 1904 e 2021, onde está a rima na História?


Aquela eterna tentação de vasculhar o passado atrás paralelos com o presente fica ainda maior em épocas de grandes crises. Em épocas de catástrofes, como a da atual pandemia, é uma tentação que serve até para conter uma outra: de encarar a situação em curso como um acontecimento apocalíptico de tão inédito. Porém, a busca por paralelos nos leva frequentemente à sensação–que em si já é um tanto problemática–de que “a História se repete”. Não que esta sensação traga propriamente nenhum grande consolo, mas ela pode ferver o nosso sangue melhor do que o medo do Apocalipse. Melhor inclusive do que a frustração, o exaspero, o desespero com o pouco (para não dizer nenhum) empenho (ou mesmo disposição) em reverter (ou pelo menos conter!) a calamidade. Sim, a crença em uma História que se repete consegue até traduzir a frustração em raiva. Em certas ocasiões, o objeto da raiva pode englobar a própria experiência (espécie?) humana como um todo.

Uma fonte inesgotável de frustração na Era CoViD são as posturas negacionistas que vêm rejeitando os atestados científicos mais sólidos–especificamente os que comprovam a ineficácia do tratamento por hidroxicloroquina. No Brasil, este dado é tão combatido que o negacionismo já não é somente uma postura, é uma política. Temos uma política negacionista tão bem organizada que conta com sua própria militância, mobilizada e empenhada em falsear a natureza (e o impacto) da pandemia, comprometer o distanciamento social, embargar o lockdown, difamar e avacalhar a vacina. Com as mortes neste País se avolumando em escala horripilante, com proporções de chacina a cada cinco minutos ou menos, prestes a atingir a totalidade de meio milhão, é natural que fiquemos cada vez mais perplexos com os negacionistas. A perplexidade tem levado muitos à caça por paralelos históricos, e alguns, seguindo uma pista ilusória, chegaram até a Revolta da Vacina, de 1904.

A ilusão começa em uma leitura equivocada da Revolta da Vacina. Basicamente, a causa principal teria sido a incompreensão/ignorância do povo carioca quanto aos perigos de doenças (varíola, especificamente) e quanto à importância da vacinação. Nesta ótica, haveria uma similaridade, ou até mesmo uma antecedência, ao atual negacionismo, mas tal interpretação é injusta, e tal injustiça cria a sua própria cepa de incompreensão. A caçada por paralelos históricos cai vítima desta moléstia. A verdade é que a população que em 1904 se revoltou contra a campanha de vacinação estava se rebelando contra anos de tratamento desumano e autoritário. Era o contexto da “Reforma Pereira Passos”, um drástico processo de remodelamento urbano que avassalava a então capital do Brasil.

O prefeito do Distrito Federal ainda era nomeado pelo Presidência da República. Na República Velha, o Presidente da República ainda era indicado pelas oligarquias coronelistas, e o cafeicultor paulista Rodrigues Alves, ao assumir a posição em 1902, tratou de colocar Pereira Passos à frente da capital. Tinham um projeto de “modernização” por punhos de ferro. A cidade infecta, caótica e insalubre, no imaginário eurocêntrico do governo, deveria ser cosmopolita, convidativa e ‘civilizada’.


Esta ambição foi definida por Lima Barreto com sua argúcia costumeira e mordacidade invejável: a obsessão da capital brasileira era alcançar Buenos Aires, cuja aspiração era emular Paris. A questão, segundo o escritor, era: se Buenos Aires, cidade plana, construía imensos bulevares à moda parisiense, o que impedia o Rio de Janeiro, cidade espremida por morros e praias, a fazer o mesmo? Os morros e praias? Nada que impedisse Pereira Passos. Os grandes cortiços no Centro da cidade que abrigavam boa parte da população humilde? Nada que Pereira Passos não pudesse remover. O sofrimento da população humilde que ficaria sem lar? Nada com que Pereira Passos fosse se sensibilizar. E assim, a partir de prioridades bem definidas, sua administração entraria para a história carioca como a que mais removeu moradias populares—só seria equiparado por Carlos Lacerda décadas depois, e por Eduardo Paes, décadas depois disto.

A cidade do Rio de Janeiro em 1902 era largamente deficitária em saneamento. O lixo, os ratos, os mosquitos onipresentes espalhavam varíola, peste bubônica, febre amarela. Ao povo, a quem faltava moradia minimamente digna, sobravam doenças altamente infecciosas. E na melhor (mais preocupante?) das hipóteses, estas doenças poderiam contaminar até as autoridades e plutocratas nacionais e os visitantes e estadistas internacionais. Para o eminente médico Oswaldo Cruz, o esforço de saneamento representava uma questão de higiene. Para o inclemente tecnocrata Pereira Passos, o esforço de saneamento apresentava um quê de higienismo social. Um quê, um erre, um esse, um tê, um u, um vê, um xis…

Charge da época, ilustrando a Delegacia de Higiene como um pente fino que, nas mãos do sanitarista Oswaldo Cruz varre a população moradora dos morros. Nas legendas, os morros reagem com perplexidade e acidez.
Oswaldo Cruz passando o pente fino no Morro da Favela

O governo mobilizou muita energia e recursos para a campanha de saneamento, mas praticamente nada para conscientização. Na iniciativa de se livrar da proliferação de ratos—agentes transmissores dos mais pródigos—as autoridades tiveram uma brilhante ideia de pagar um valor à própria população por cada rato que capturassem. Parecia uma engenhosa economia de recursos aos transferir, dos agentes de Saúde uma tarefa que lhes era própria. Afinal, o pagamento que lhes era devido doía mais ao bolso que as merrecas oferecidas aos que sequer tinham merrecas para o sustento. Esta ideia, aparentemente, era muito mais natural às autoridades do que simplesmente explicar o funcionamento das doenças e o perigo específico de proliferação de ratos. Só que a proliferação cresceu justamente com esta medida do governo, já que muitos dos inadvertidos—a quem cada merreca faz a diferença—dedicaram-se à criação de ratos. Não que a administração Pereira Passos sofresse do negacionismo contra à Ciência, “apenas” negava ao povo este mesmo conhecimento. Aliás, como lhe havia negado o direito à moradia. Quem haveria de confiar em políticos desta estirpe?

Crítica à criação de ratos em troca de pagamento

Diante do evidente desastre da política de pagamento por ratos capturados, o governo a suspendeu. Mas a postura de negar conscientização ao povo ele manteve. Assim como ele manteve sua vocação autoritária quando começou a começou a campanha sanitária obrigatória. Lares eram invadidos e revirados sem quaisquer explicações. As autoridades não se dignavam a dar alertas. Nem a explicar as formas de prevenção das doenças ou pelos menos as noções fundamentais de higiene. A partir daí é que os acontecimentos da Revolta “da Vacina” propriamente se desenrolaram. A vacinação maciça contra a varíola veio contaminada pelo vírus da truculência e do autoritarismo que os cariocas mais pobres já conheciam bem—e dos quais até hoje lutam para se libertar.

Há um dito (geralmente atribuído a Mark Twain) que vai mais ou menos assim: a História não se repete, mas ela rima. A verdadeira rima entre 1904 e a atual pandemia no Brasil não está na negacionismo de fatos científicos. Está na negação de direitos à população. A inapetência dos governantes em 1904 para uma conscientização popular e seus desrespeito à moradia popular tinham a mesma raiz. Se Pereira Passos desperdiçou a chance de disseminar as informações a respeito das epidemias, Jair Bolsonaro assume a tarefa de sabotar as informações a respeito da pandemia. Sua militância negacionista que despreza a vacina e se pauta pela cloroquina é da mesma cepa que partilha de sua visão de direitos humanos. É a mesma cepa que sempre tolerou, justificou, aplaudiu e até protagonizou a truculência e o autoritarismo contra as camadas mais baixas. É a cepa que sustenta a tradição nefasta de massacres e chacinas contra pobres, contra moradores de periferia, das favelas. Pereira Passos botou abaixo os cortiços do Rio de Janeiro com a mesma naturalidade com que autoridades policiais invadem e cometem atrocidades nas favelas—favelas que, no Rio, sem qualquer coincidência, foram paradeiros de muita gente que perdeu seus lares no bota-abaixo de Pereira Passos.

Os revoltosos da cloroquinolatria bolsonárica se revoltam também contra os direitos humanos. São historicamente contrários aos direitos humanos que deveriam proteger os segmentos “marginalizados”, a saber: os segmentos que mais são colocados à margem do processo decisório sociopolítico, falemos de 2021 ou de 1904. Nisto, não há repetição da História, há permanência da realidade. A revolta da militância bolsonarística não é em prol da cloroquina; em última análise, é em prol da exclusão. Os detratores da vacina contra a Covid não rimam com o povo que se revoltou à ocasião da vacina contra a varíola. Eles rimam com as medidas abusivas tomadas contra este povo na Era Pereira Passos e em outras. Quando Jair Bolsonaro despreza a vacina contra a Covid, dizendo que as pessoas poderiam até virar jacarés, não é numa agressão à Ciência. É numa agressão aos brasileiros. Se entre 1904 e 2021 há uma rima na História, ela não se encontra na rejeição da vacina. Quem não ouve o passado não saberá reconhecer seus ecos. 1904 não ecoa na recente piada de uma vacina transformando seres humanos em jacarés. Ecoa na recente atrocidade de uma chacina vitimando vidas humanas no Jacarezinho. E a chacina no Jacarezinho é recente em virtude do que é crônico.

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